ANIVERSÁRIO
02 de fevereiro de 2021 | Governo do Estado de Rondônia
Muito antes de ser Costa Marques, cujo 38º aniversário de instalação do município é lembrado em 1º de fevereiro, a prata boliviana era a moeda corrente na fronteira brasileira com a Bolívia. A data faz parte do calendário de feriados municipais da Casa Civil do Governo do Estado de Rondônia. Só se falava português no barracão de Balbino Antunes Maciel, ou melhor, em sua própria família, porque os próprios empregados só se entendiam em castelhano.
Barracas ou barracões – alguns assobradados – eram moradias dos seringalistas da época. Salas de visitas tinham paredes forradas de chita e eram regularmente mobiliadas, não faltando retratos, grandes espelhos e relógios.
O município instalado em 1983 tem atualmente cinco mil habitantes, fica distante 708 quilômetros de Porto Velho, e homenageia o lendário político Manoel Esperidão da Costa Marques. Nascido em Poconé (Pantanal mato-grossense), ele era um homem estudioso do Vale do Guaporé, onde identificou rios, córregos, ilhas e população nos lados brasileiro e boliviano.
Diversos aspectos da história desse município e da região fronteiriça no Guaporé estariam perdidos nos escaninhos da história, não fosse o estudo (incluindo diários de viagens) que já faz parte do Acervo Digital da Câmara dos Deputados, em Brasília, cujo original a Superintendência Estadual de Comunicação (Secom) acessou esta semana.
O trabalho de Costa Marques tem 123 anos e se denomina: Região occidental de Matto Grosso – Viagem e estudos sobre o Valle do Baixo Guaporé: da cidade de Matto Grosso ao Forte Príncipe da Beira.
[No final desta matéria publicamos parte dos levantamentos, com a atual ortografia da língua portuguesa].
Era o tempo do ouro, disperso pelos afluentes do Rio Guaporé; da baunilha, copaíba, erva mate, poaia, salsaparilha, tocary, e sobretudo da seringueira, chamada de l’arbol del oro pelos bolivianos.
No início dos anos 1900, Manoel da Costa Marques constavava “120 almas” no Barracão de Militão Fernandes Leite, denominado Ilha das Flores;
80 no Barracão de Felippe Nery da Trindade e seus vizinhos, nos Morrinhos;
110 no Barracão do boliviano Agápito Añes, nas Pedras Negras, e de Manoel Bento;
30 no Barracão Dois Irmãos e Quebra-Bote;
120 no Barracão de Balbino Maciel e seus abonados;
80 no Barracão Bella Vista, de Frey y Landivar;
80 no Barracão Mateo-há, do Dr. Emílio Pena;
20 no Barracão de Eugenio Gomes de Santana;
150 nas diversas barracas na ilha de São Simão;
400 no Barracão de Versalhes de Cueller & Mansilla; e
80 em pequenas barracas dispersas, somando “890 almas”, mais “500 que aparecem na época da safra”, totalizando 1.850.
Na região só liam os jornais La Ley, de Santa Cruz de La Sierra, La Democracia, de Trinidad (capital do Departamento do Beni), La Voz de Itenez e El 10 de Abril, de Magdalena (capital da Província de Itenez), e La Gazeta del Norte (de Riberalta). Este último, segundo relato de Costa Marques, chamava o Brasil de “China da América do Sul”.
Em síntese: bolivianos eram bem superiores aos brasileiros do velho “Matto Grosso” (Vila Bela da Santíssima Trindade), que se estendia até a barranca do Rio Madeira, na antiga cidade de Santo Antônio. Foi em 20 de janeiro de 1906 que o coletor de impostos e expedicionário mato-grossense se hospedou, com malária, na casa do desbravador Francisco Chianca. Costa Marques resistiu mais de 40 dias e morreu em 18 de abril de 1906.
Consta que as conversas de Costa Marques tanto impressionaram Chianca que ele mudou o nome de Porto São Domingos para Porto Costa Marques. Outro lendário personagem regional, o bispo francês de Guajará-Mirim, então Monsenhor Francisco Xavier Rey, escolheu 20 de janeiro como dia do padroeiro de Costa Marques, São Sebastião.
Conforme o estudo guardado no Acervo Digital da Câmara dos Deputados, no século XVII havia na foz do Rio São Domingos, no Guaporé, uma povoação chamada Palmella, onde se instalara a Missão São José. O nome fora escolhido por um comerciante de Cuiabá, devido aos índios que habitavam a região. Os Palmella viviam aldeados no centro, a quatro léguas do ponto do antigo destacamento das Pedras Negras.
O capitão do Exército Antonio Rodrigues de Araújo, outro mato-grossense, foi o primeiro que, em 1875, manteve relações com os indígenas. A Comissão de Limites das Cortes de Portugal Espanha avaliava em aproximadamente 400 índios que trabalhavam nos seringais da região. Em 14 de março de 1769, o governador da Capitania de Mato Grosso, D. Luís Pinto de Souza determinou que fossem trocados os nomes de vários lugares, dentre eles o de São José, que passaria a se chamar Leomil, e o Sítio das Pedras, de Destacamento de Palmela.
Segundo Francisco Chianca, devido à queda nos preços da borracha, pela depressão ocorrida no fim da Primeira Guerra Mundial, a companhia que financiava os seringalistas se retirou da área, não deixando outra opção, senão a fuga do lugar. Chianca construiu um tapiri à beira do Rio Guaporé, na foz do Rio São Domingos, local conhecido como Porto da Barra de São Domingos, e foi ali que recepcionou Costa Marques, que descia o Rio Guaporé, com destino ao Posto Fiscal de Guajará-Mirim e, ao cair da tarde, no Porto da Barra do São Domingos, parava para o pernoite.
“Não ha ordem no Baixo-Guaporé, e portanto não há segurança de viela, nem de propriedade”, escrevia Costa Marques, mencionando diversos casos de saques à embarcações e violência contra ribeirinhos.
Ele “mapeou” a região quando a indústria regional limitava-se exclusivamente à extração de seringa ou goma elástica, da mesma árvore que restou às atuais reservas extrativistas que o Governo de Rondônia vem atualmente resgatando dentro do Programa Floresta+.
Coagulavam o leite da seringueira pelo processo da defumação, único usado ali. O comércio principal era a venda da goma, que ali estava custando 38 a 40 bolivianos por arroba castelhana de 25 libras. Em 1903 custava 20 bolivianos. As mercadorias para o consumo local – fazendas, secos e molhados chegavam pelas mãos da casa alemã Zeller, Rôsler, Villinger & C. de Santa Cruz de la Sierra, ou pela cidade de Matto Grosso, casa brasileira Maciel & C, ou da casa alemã Voss, Stoffen & C., de Corumbá.
De Magdalena, de Baures e de San Joaquim, povoações bolivianas, vizinhas do Guaporé, vinha grande número de mascates a mercadejar em fazendas e molhados. Conforme Costa Marques, os preços eram “exageradíssimos”: uma garrafa de vinho vermouth custava 12$ e uma garrafa de vinho do Porto 16$. Um litro de vinho francês 12$; uma lata de sardinhas 4$. O cifrão à época significava réis.
As vendas aconteciam pelo escambo (trocas): entregavam-se os gêneros e recebia-se o látex. “Não é exagero dizer-se que a exportação neste ano (1906) já foi além de 105 mil quilogramas (105 toneladas),ou sete mil arrobas, pois só a barraca de Versalhes, de Cueller & Mansilla, exportam perto de três mil arrobas, e a casa Voss Stoffen, de Corumbá, dizem que exportou perto de duas mil arrobas”, escrevia ele anotava.
ÁGUAS SEM O MENOR DIVISOR”
Trechos dos relatos de Costa Marques:
“Aqui, no Guaporé, vi reunidas as águas do Saroré, Galéril, Verde, Corumbiara, Mequenes, São Miguel, Cantaria, Baures e Itonomas, numa extensão de mais de oito léguas acima de suas fozes, parecendo mesmo não existir entre eles o menor divisor de águas.
As vivendas dos seringueiros das margens do Guaporé são então ilhas de um quarto de légua de comprimento sobre igual largura, e a maior vivência de terra firme não tem maior extensão que uma légua em quadra.
A cidade de Matto Grosso (Vila Bela) fica então cercada de água. É uma ilha de uma e meia légua em quadra. Ao Sul, o Guaporé e seus banhados; ao Norte o Saroré; a Leste os banhados do Saroré que se comunicam com o Guaporé; ao Poente o Guaporé.
As povoações bolivianas de Baurés, Magdalena, São Joaquim, São Romão, ficam desde Dezembro até Maio rodeadas de água. Não se anda a cavalo; não transitam os carros. Só se pode viajar embarcado. Esse enorme banhado vai ao Mamoré, e então duplica-se, triplica-se, quadruplica-se a área submersa. As águas vão às fraldas até Aneles, na Bolívia, e em nosso lado ficam apertadas pelos grandes espigões dos Parecis, que formam as célebres cachoeiras que atemorizam os que descem o Madeira.
Eis aí, nessas matas alagadas, nas margens do Guaporé e nas suas ilhas, também alagadas, o lugar onde nasce, cresce e vive a seringueira, que é hoje a principal riqueza desta região para onde outrora o ouro chamava de toda a parte os que dele tinham sede”.
No século XVIII a Comissão de Limites mandada pelas cortes de Portugal e Espanha explorava pela primeira vez o Rio Guaporé. Costa Marques revela que a empresa Maciel & Cia. pretendia utilizá-lo e, em 1899 o considerava adaptável à navegação por lanchas a vapor.
Sobre o Alto Guaporé, ele dizia: “Pode-se dividir essa extensão em duas seções: de margem alta ou terras firmes e de margens alagadas ou pantanosas, a maior. Ali o rio é sempre mais largo, menos profundo e menos obstruído; aqui muito fundo, menos largo e sinuoso. Não há, porém, em todo o trecho explorado uma só cachoeira ou pedra que estorve a navegação, há, sim, a necessidade de muita limpeza, já no leito do rio, nas suas margens”.
“Não me havia enganado. Em 1900 subia da cachoeira Guajará-Mirim a lancha a vapor Guaporé, daqueles industriais, cabendo-lhes assim a honra de trazer pela primeira vez àquela velha cidade, outrora cheia de fausto e grandeza, o vapor que, se existisse naqueles remotos tempos, teria conservado a sua importância, atentas as riquezas naturais do vale desse formoso rio”, acrescenta.
“Não se usa do fumo em corda. Eles falam sempre em tabaco el maso. Colhidas e secas as folhas de fumo, são depois emboladas em maços de 0,20m ou 0,30 de comprimento e grossura de 0,08m e 0,05. Em seguida são arrochadas com corda e assim ficam até estarem curadas ou prontas para o consumo. Vendem-se em maços, e aos pesos.
A carne seca é feita do seguinte modo: morta a rês e secada a pele, procede-se logo a separação de toda a gordura da carne, e só então é que se manteia e seca-se. Essa gordura é misturada com sebo e tem-se então a manteca ou graxa, com que se prepara geralmente a comida nas casas bolivianas.
Só os brasileiros têm ali porcos na seva, e isso mesmo em diminuta quantidade. A base da alimentação no Guaporé é o arroz. O feijão pouco se encontra. Erri Baures, S. Joaquim e Magdalena, surtem-se os seringueiros de mantimento. Geralmente passam mal os operários.
Os camaradas bolivianos, índios chiquitanos, são alimentados exclusivamente a milho, que às vezes falta e a fome vem. Quando um desses infelizes adoece, o caldo que se lhe dá, em estado grave, é feito do pó de milho torrado e água quente. Pode-se dizer que chiquitano doente é chiquitano morto. Até há falta de humanidade.
Pouco se planta. Os instrumentos de lavoura que ali se servem os bolivianos são: a pá em vez da enxada, o facão em vez da foice, e uns machadinhos que para os nossos trabalhadores teriam pouco valor. De bebidas alcoólicas abusa-se extraordinariamente, sendo mais moderados os brasileiros”.
Fonte
Texto: Montezuma Cruz
Fotos: Daiane Mendonça, Frank Nery e Arquivo Digital Público da Câmara
Secom - Governo de Rondônia
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